Uma noite a mais

– Dança comigo? – Ele perguntou com o corpo levemente curvado sobre ela, o braço estendido e a mão espalmada reafirmando o convite.

Ela tinha o olhar fixo no horizonte e o pensamento mergulhado em devaneios impenetráveis.

Ele curvou-se um pouco mais. Esticou seu braço aproximando-se um pouco mais enquanto a voz tornava-se mais enfática: – Dança?

Ela virou-se e fixou primeiro a mão, depois seus olhos seguiram pelo braço e foram subindo até fitarem os olhos dele. Os olhos dela não demonstravam nenhum vestí­gio de pensamento ou vontade. A boca entreaberta lhe conferia um ar de total apatia.

Ele mantinha o sorriso inflexí­vel e a pose firme. Seria um perfeito cavalheiro não fossem as roupas puí­das. Ela fugiu ao seu olhar fitando o chão. Sabia ser inútil recusar, ele seria capaz de permanecer ali horas seguidas assegurando que sua vontade prevalecesse.

Então ela levantou a mão deixando que ele a tomasse.

Ele gentilmente a guiou até o meio da sala e num movimento cerimonioso rodopiou ao redor dela de modo que, quando parou, seu corpo já estava colado ao dela. Enquanto o braço gentilmente a aproximava ainda mais, falou suavemente no ouvido dela: – Você está especialmente linda hoje!

Ela não esboçou reação. Deixou que ele a conduzisse enquanto a música romântica e suave envolvia todo o ambiente.

Quando a música aproximou-se do fim, ele encenou um movimento mais elaborado, girando-a sobre si mesma enquanto ele curvava-se em perfeita sincronia com o clí­max da melodia que os conduzia.

E quando o som finalmente baixou, ele sorriu para ela mais uma.

– Fiz um jantar especial para nós. Temos muito que comemorar.

Ela nada falou. Imersa em sua apatia ela não se deixava contaminar pela alegria que ele transpirava.

Ele seguiu até a sala de refeições. Na mesa posta, um conjunto completo para dois. Ele afastou a cadeira, esperou que ela começasse a sentar para empurrá-la e acomodá-la. Pegou a travessa que estava ao centro e serviu um pouco da comida para ela. Não era exatamente um banquete. Pareceriam ovos mexidos, se eles tivessem ovos, mas era certamente apenas mais um preparado industrial saudável e insosso.

Ela continuava impassí­vel e não ousava contrariá-lo. Sabia ser inútil resistir à vontade dele.

– Estive no campo oeste. Está uma beleza por lá. – Ele falava enquanto servia uma taça de vinho. Pelo menos ainda tinham vinho.

– í‰ a última! – ele falou olhando para a garrafa. – Que pena!

Ela despertou de seu torpor. Ouvira direito? Ele dissera a última garrafa de vinho, ou teria sido a última visita?

– Como disse? – ela perguntou com a voz insegura e embargada.

Agora era a vez dele ficar surpreso. Ficou boquiaberto, segurando a garrafa na mão e olhando-a com surpresa.

– Eu disse: que pena!

– Sim, pena de quê?

– Pena que é a última.

– A última…?

– A última garrafa de vinho. Acabou, entende?

– Como assim acabou?

– Acabou, não há mais.

Ela tornou a fitar o chão. Agora tudo piorava, não tinham vinho. O que mais poderia esperar? Nada. Nenhuma esperança, nenhum consolo. Só a sucessão de dias longos e vazios.

– As árvores finalmente estão florindo. – ele continuou a falar. – Logo teremos frutas. Não muitas ainda, mas logo será o bastante.

Não tinham mais vinho. Ela não se importava com as frutas. Foi então que ela se deu conta de que não se importava com nada. Sem vinho nada mais importava.

Doloroso e cruel. Trágico e desumano. Vinho era a única coisa que lhe importava. Ela meneou a cabeça e mordeu os lábios em reprovação a si mesma. Não era isso que esperara. Tanto tempo e a única coisa da qual restara se lamentar era o vinho, a falta dele.

Ele continuava a tagarelar. Falava do tamanho e das cores das flores. Da textura das pétalas e do viço das folhas. Até as sombras motivaram comentários entusiasmados.

Mas o pensamento dela estava amortecido.

Ela pegou a taça que continha o último alento de sua alma atormentada.

Cheirou o lí­quido perfumado e por um instante pode sentir toda a força das flores que ele descrevera. Ergueu o copo translúcido contra a luz mortiça do teto. Não era um copo de cristal, mas permitia que ela pudesse vislumbrar a beleza da cor vermelho-rubi.

Aspirou profundamente mais uma vez o aroma do lí­quido e sorveu todo o conteúdo derradeiro.

Manteve ainda por alguns instantes o copo colado aos lábios como se a esperança pudesse preencher novamente o vazio que agora se apoderava de sua alma.

Ele continuava a tagarelar sem perceber que ela agora começava a ruborizar. Não notou quando ela deixou cair o copo, nem tampouco percebeu quando o corpo dela tombou sobre a mesa, deixando escapar o último sopro de vida num pensamento de que afinal não valera a pena.

Quando finalmente ele terminou de descrever todas as reminiscências de seu monólogo, olhou com curiosidade para o modo como ela se encontrava. E depois de algum tempo levantou-se e saiu, deixando-a só, definitivamente.

—ooOoo—

A sala estava na penumbra. A mesa estava ocupada por técnicos e autoridades responsáveis pela operação em andamento. No lugar para onde convergiam todos os olhares uma cadeira vazia aguardava a chegada do Presidente. No centro, a projeção começou mostrando a sala de operações de uma nave militar. Nela um oficial jovem de expressão firme e determinada aguardava instruções para iniciar a conferência. Um senhor grisalho irrompeu pela porta e avançou para a cadeira vazia emitindo um cumprimento vago e repetido a todos os presentes. Depois de acomodar-se virou para a Ministra da Ciência que estava a seu lado e teceu alguns breves comentários inaudí­veis. A Ministra certificou-se uma vez mais de que todos os interessados estavam presentes e falou com a atenção voltada para a projeção: – Podemos começar Capitão, estamos todos presentes. Alguns não estão a par de todos os detalhes da operação. Por favor, responda todas as perguntas.

– Sim senhora Ministra. – falou o capitão, e sua voz parecia vir diretamente da imagem que parecia projetada a cada um dos presentes em particular.

– Como sabem – continuou a Ministra – enviamos uma missão de exploração ao quanto planeta do Sistema Oberon. Primeiro uma espaçonave de manutenção e cinco anos depois outra nave com a tripulação de pesquisa. Perdemos contato com os dois veí­culos.

– Quando foi isso? – perguntou um dos presentes.

– Há pouco mais de 50 anos. – respondeu a Ministra.

– Porque demoramos tanto tempo? – perguntou outro.

– Com os sistemas de propulsão que possuí­mos, qualquer nave que partisse antes demoraria ainda mais para chegar. Tão logo foi possí­vel estabelecemos uma rota segura para uma operação de resgate e enviamos outra espaçonave. Ela aterrissou há 56 horas e organizamos esta conferência para tomar ciência dos acontecimentos.

– Capitão, o que descobriram?  – Perguntou o Presidente.

– Bem, as duas
naves chegaram aqui. A nave de suporte aterrissou com sucesso e tudo indica que ela estava operacional. Encontramos o robô “mordomo”. Ele está operacional, mas está avariado. Nossos técnicos acreditam que ele tenha sido danificado durante o pouso da nave da tripulação.

– Explique melhor. – pediu o Presidente.

– Ele estava programado para instalar a base. – interveio a Ministra da ciência. – Deveria iniciar os preparativos para receber os exploradores, ativar os sistemas de plantio, produção e processamento de alimentos. Na véspera do pouso ele deveria arrumar uma recepção especial para comemorar a chegada da equipe.

– Era para que eles se sentissem em casa depois de três anos de viagem. – disse o homem magro e agitado que fazia as relações públicas da presidência.

– Eles estavam hibernando, animação suspensa. – disse a ministra – Não perceberam que haviam se passado três anos.

– O que deu errado, Capitão? – perguntou o presidente.

– Os sistemas de aterrissagem da nave que trazia os exploradores falharam. Ainda não sabemos a origem desta falha, os computadores estão destruí­dos, mas ela chocou-se violentamente com o solo. A explosão deve ter atingido o robô que estava posicionado próximo à área de pouso. Parece que ele entrou em curto e ficou travado no programa de recepção aos visitantes.

– Como assim? – perguntou a ministra.

– Seus sistemas entraram em “loop”. A cada 27 horas e 42 minutos ele reinicializa seus sistemas e é como se fosse novamente o dia da recepção aos exploradores.

– Porque um tempo como esse? – resmungou um senhor baixinho de bochechas coradas que parecia inquieto em sua cadeira.

– í‰ a duração do dia naquele planeta. O robô foi programado para trabalhar naquele ciclo. – esclareceu a ministra.

– í‰ como se todo dia fosse o dia da chegada da nave exploradora. – complementou o capitão.

– E nesses 50 anos nunca chegou ninguém… – comentou com voz desanimada o Assessor de Comunicações.

– Na verdade chegou alguém… – disse o Capitão.

– Alguém sobreviveu? – O Presidente perguntou com interesse.

– Encontramos uma tripulante que sobreviveu à queda da espaçonave. – disse o Capitão.

– Tem algum tripulante vivo? – emendou a Ministra.

– Não senhora. Ela já morreu.

– Como foi isso?

– Teve um infarto. Parecia ter uns 70 anos e morreu umas duas horas antes de chegarmos. Descobrimos quando o robô resolveu parar de dançar e foi nos servir o jantar…

MigX

Engenheiro, funcionário público, metido a escritor e ilustrador... Publicou na Quark, Scarium e e-nigma. Membro fundador da Oficina de Escritores, vem tentando sua própria jornada do herói na vida, e a viagem do escritor, nos blogs e na OE.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.